A geração do Júlio

October 27, 2010

De tempos a tempos sou marcado por uma geração de alunos que vincam um ano de excepção no curso de informática no ISEL. Até hoje (em 9 anos de ensino) aconteceu-me 3 vezes e nos intervalos entre essas gerações (cerca de 2 a 3 anos) navega-se num deserto de ausência de marcos que nos fiquem nas boas memórias.

Essas gerações são definidas por grupos de alunos exemplares, com um percurso conjunto e que temos a oportunidade de seguir em diferentes disciplinas, culminado no projecto final de curso. Nesses grupos domina uma heterogeneidade saudável com diferentes níveis de aproveitamento, atitudes, modos de estar e de postura com o curso. Mas todos eles trazem uma mais valia própria que deixa a sua marca naquela geração, o que faz com que não me consiga esquecer dos seus nomes.

Quando somos brindados com a oportunidade de orientar ou arguir um projecto final destes alunos ficamos com aquela sensação de trabalho cumprido e memorizamos para a eternidade aquele momento. Nessas alturas não deixo escapar o facto de ter acompanhado o crescimento e evolução daqueles alunos ao longo do curso.

Só me lembro de sensações semelhantes quando na indústria um grande projecto me corria de feição e no final celebrávamos com toda a equipa a sua entrada em produção.

Este ano terminou uma dessas grandes colheitas, que teve um ponto diferenciador das outras duas. Foi uma geração de alunos trabalhadores estudantes, que frequentavam o regime nocturno. Ao contrário do que sempre acontece em que estes alunos têm um desempenho mais complicado por terem que conciliar o curso com os seus compromissos profissionais, esta geração revelou-se um verdadeiro exemplo de perseverança com vários alunos a concluírem o curso em 3 anos, o que foi algo excepcional.

Tive a sorte e agradável surpresa de me cruzar com esta turma em 2008 no seu 3º semestre quando lhes leccionei a disciplina de PICC (Programação imperativa em C e C++). Ao contrário do que sempre acontecia com turmas nocturnas, as aulas decorriam com grande ritmo e discussões acesas sobre os temas leccionados. O pior que pode haver é reduzir uma aula a um monólogo meramente expositivo. Por isso fomento a troca de ideias e a receptividade foi grande nessa turma tornando as aulas bastante dinâmicas.

A maturidade dos alunos e a sua postura levou a bons momentos de confraternização deixando cair a distancia que por vezes existe entre alunos e professor. O sentimento de confiança deu-me a segurança de poder levar uma vez a minha filha Madalena (na altura com 2 anos) a conhecer esta turma. Ainda hoje ela não se esquece desse dia, perguntando sempre por um dos alunos que tinha o mesmo nome do filho do carteiro Paulo dos desenhos animados – Júlio. Foi um momento de brincadeira e risos em que os alunos alinharam, com o Júlio a vestir o papel de filho do carteiro.

Apesar de fomentar a interacção nas aulas, fora delas acabo por ter uma postura fria e manter algum distanciamento com os alunos (uma forma de me proteger nesta ingrata profissão de professor). No entanto sou um observador nato e saboreio a meu próprio prazer o contemplar dos episódios dos alunos dignos de destaque. Seja simplesmente no intervalo das aulas, seja indagando o seu percurso nas disciplinas dos meus colegas.

Assim continuei a seguir estes alunos ao longo do curso e voltei a dar-lhes aulas no 5º semestre em “Programação na Internet”, repetindo-se os debates acesos sobre a matéria e o convívio fora das aulas com troca de piropos futebolísticos, entre outros temas. Pena que o Júlio já não acompanhasse este grupo, porque tinha sido um dos melhores alunos em Picc e porque também fazia sempre parte integrante das animadas cavaqueiras que se formavam no intervalo das aulas e que me davam especial gozo provocar ou ficar simplesmente a escutar.

No 6º semestre acabei por ser orientador de projecto de fim de curso de um grupo de três desses alunos - o Nuno, o Paulo e o Ricardo - que terminaram o curso com chave de ouro na arguição do seu projecto.

Chegou assim ao fim mais uma geração de alunos de licenciatura exemplares, dos quais alguns ficaram pelo caminho, outros atrasaram-se um pouco mais e outros perdi-lhes o rasto por completo, como foi o caso do Júlio. Mas independentemente dos casos, todos eles iriam ficar marcados na minha memória como os alunos da geração do Nuno, o Paulo e o Ricardo que levei até ao fim e que me proporcionaram muitos e bons momentos de ensino.

Recebi hoje com grande choque a triste notícia de que o Júlio tinha falecido (mais informações na reportagem do jornal expresso de 23 de Outubro, páginas 26 e 27 do primeiro caderno). Este projecto que tanta satisfação me trouxe nestes dois últimos anos acaba assim com este triste final e ficará marcado para sempre como a geração do Júlio.

O Júlio foi um exemplo dos que não se escondem atrás de uma desculpa e que querem superar todos os desafios. Foi um profissional de sucesso e quando lhe foi permitido ingressou no ensino superior para completar a sua formação, apesar de todos os obstáculos.
Mesmo quando chegavam às aulas com 8 ou mais horas de trabalho em cima, a geração do Júlio foi marcada por um grupo de alunos que conseguia manter a concentração, tirar o máximo rendimento de cada aula e ainda levar os intervalos com um sorriso como se os problemas não existissem. O quanto vos admiro por isso, eu que ao fim 10 minutos adormeço em qualquer aula teórica.
Esta geração é o exemplo verdadeiro da prova de esforço de quem teve que conciliar a vida profissional, com o ensino superior e uma vida familiar. Sei o quanto isso custa e nem chego a ter a uma carga de trabalho próxima da vossa.
Parabéns pelos que chegaram e chegarão ao fim apesar de todas as adversidades e obrigado por terem sido meus alunos. Também eu aprendi com vocês.
Que hajam mais alunos como o Júlio, mas que terminem com um final feliz.