(este texto foi escrito no dia 11 de Março de 2007 de regresso do hospital onde tinha internado o meu avô)
O meu avô nasceu nas Caldas da Rainha. Era um apaixonado pela zona oeste de Portugal. No último ano dizia que concordava com a construção do aeroporto da Ota, porque era mais uma forma de dinamizar o desenvolvimento da zona oeste. E não adiantava dizer-lhe que havia outras zonas em Portugal a precisarem de mais incentivo à dinamização.
O meu avô adorava passear a pé. Um dia com 6 anos, quando vivia nas Caldas da Rainha ouviu falar de um enorme incêndio que estava a deflagrar no INATEL da Foz do Arelho. Não perdeu tempo. Juntou-se a mais uns amigos e lá foram a pé 10 Kms para ver o incêndio. Só chegou de noite e deixou os pais o dia todo desesperados à sua procura. Diz que apanhou a maior tareia da vida dele.
O meu avô foi alfacinha (não nasceu em Lisboa, mas fez lá a sua juventude). Vivia em Alfama e começou a trabalhar aos 12 anos numa loja de meias no Bairro Alto. Todos os dias tinha que descer Alfama e subir em direcção ao Bairro Alto. O seu sonho era um teleférico que unisse as duas colinas.
O meu avô era um borguista. Tudo era desculpa para estar fora de casa. De dia trabalhava. À noite tinha as aulas como desculpa para poder sair. Vadiava tanto pela noite que uma vez na altura dos santos populares fez uma directa na véspera da inspecção para a tropa. Quando se apresentou para a inspecção era tal a sua condição que o deram como inapto. Safou-se.
O meu avô foi patinador. Pertencia a uma equipa de hóquei de Lisboa (mais uma desculpa para não estar em casa). Era guarda-redes (lugar de risco). Diz que uma vez levou uma bolada no meio dos olhos que quase o fez voar. Já em adulto deixou a minha avó em apuros, quando se pôs a patinar com a minha mãe ao colo, que estava com as pernas engessadas.
O meu avô era fadista. Nas suas investidas nocturnas passava pelas tascas dos bairros de Lisboa onde cantava o fado em troca de um copo de vinho.
O meu avô foi actor amador. Um dia emprestou uns sapatos à actriz Laura Alves para representar numa peça.
O meu avô era fumador. Fumador desde os 12 ou 13 anos (não sei ao certo). Começou por fumar mata ratos, que eram os cigarros mais baratos da altura. Divertia-se a passear pela avenida da Liberdade, rua acima, rua abaixo na sua exibição de grande homem para as miúdas que por ali passavam. Quando não era a exibir-se, divertia-se com os amigos a mandar o fumo dos cigarros para cima de lenços brancos que ficavam com enormes manchas amarelas (tal era o nível de nicotina dos cigarros).
O meu avô foi descriminado pelo regime. Viveu na Maceira, uma aldeia que na altura era sustentada economicamente pela cimenteira (Empresa de Cimentos de Leiria (ECL)), detida por Champalimaud (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Sommer_Champalimaud). E a cimenteira sustentava-se com o suor dos seus aldeões. Nesta aldeia todos trabalhavam directa ou indirectamente para Champalimaud. A minha avó era enfermeira e parteira, era conhecida em toda a aldeia e todos a respeitavam. O meu avô nunca escondeu os seus ideais e por isso nunca lhe facilitaram a vida. Nunca lhe deram emprego por lá. Não o deixavam frequentar os pólos culturais da aldeia. Não o deixavam entrar nas festas da aldeia. E não sofreu maiores retaliações porque era a sua esposa que safava a vida de muitos dos aldeões. Metade da população tinha nascido pelas mãos da minha avó. Um dia fartaram-se e foram viver para Leiria (foi lá que eu nasci).
O meu avô esforçava-se pela imparcialidade, embora não fosse (veja-se o exemplo da Ota). Um dia no hospital com o meu avô, esforçando-me para que ele abrandasse nas suas alucinações, comecei a puxar conversa sobre as inúmeras viagens que ele tinha feito pelo país. Perguntei-lhe então qual a região mais bonita de Portugal, ao que me respondeu Beira Interior. Questionei-o “Então não é o litoral oeste?” e respondeu-me “É a minha região, mas sou imparcial.”. Num outro âmbito em 1996 quando Otelo Saraiva de Carvalho (http://pt.wikipedia.org/wiki/Otelo_Saraiva_de_Carvalho) foi amnistiado sob grande polémica. Perguntei ao meu avô se concordava, ou não. Disse-me que reprovava qualquer tipo de reivindicação com base na violência e como tal reprovava as acções das FP-25. No entanto, daquilo que via nos noticiários e do que tinha lido, nunca tinha sido provada a ligação de Otelo às FP-25. Se era ela o responsável deveria ser condenado, se não, então era correcta a amnistia e injusto os anos que ele já tinha passado na prisão.
O meu avô tinha a honestidade como lema. Nunca me esquecerei um dia em que levei-lhe dois limões que tinha apanhado de uma árvore por onde passei. Acusou-me de ter roubado os limões. Se o dono da árvore não me tinha oferecido, nem eu lhe tinha pedido, então era um roubo.
O meu avô conduziu até aos 80 anos. Dizia que eram as suas pernas. No dia em que lhe tirassem a carta tiravam-lhe as pernas. Renovaram-lhe sempre a carta e nunca o vi ter um acidente.
O meu avô dizia-se ateu. E não sei porque razão despedia-se muitas vezes com “ide na paz do senhor”. Assim se despediu da minha avó após a missa do seu funeral. Assim se despediu ontem de mim.
O meu avô zelava pela pontualidade…
O meu avô era hiper organizado. Dizem que esta faceta foi-me deixada de herança.
O meu avô nunca esteve internado num hospital. Nunca teve nenhuma lesão que o levasse ao hospital. E quando teve que ir lá parar… foi pelas minhas mãos.