Sinto agora a dor da perca do meu avô. Pensei que tinha sentido essa dor no momento em que em tom de desespero fui confrontado com o meu avô amarrado numa cama de hospital. Mas são dores diferentes. Agora é uma dor de facto consumado, uma dor precisa, incisiva como um raio acutilante sobre o seu alvo.
Da outra vez era a dor da incerteza, da vontade de querer resolver algo impossível de solucionar, a angústia de estar tão perto e não conseguir fazer nada para ajudar de quem mais se gosta. Foi muito duro estar ali com ele nos braços, desamarrá-lo e revoltar-me contra os que o prenderam à cama. Mais duro ainda quando tive que o segurar com toda a força, impedi-lo de fugir e gritar pelos enfermeiros para que me ajudassem. A autêntica sensação da faca de dois gumes onde para qualquer um dos lados sentimos que podemos ser estracelhados.
Já se passaram quase 2 anos e meio desse episódio e parece que foi ontem. 2 anos e meio durante os quais perguntei a todas as divindades (se é que existem) porque é que teimavam em repetir aquilo que já tinham feito com as minhas outra duas avós. A primeira passou os 2 últimos anos de vida presa numa cama de hospital e a segunda presa durante 5 anos ao Halzeimer e Parkinson encaixada como um bolo numa forma, no seu cadeirão sem se mexer. Depois das avós supliquei para que o mesmo não voltasse a acontecer mais uma vez e agora com o meu avô. Mas aconteceu.
Depois de um AVC quase fulminante que o deixou moribundo numa cama de hospital, sucedeu-se quase uma recuperação milagrosa. Não porque acredite em milagres. Mas porque não acreditava que uma pessoa de 80 anos que ficou com amnésia, sem ver, sem coordenação motora, passado 2 meses estava a viver novamente sozinho e de forma autónoma na sua casa (ou no seu cantinho como ele tão carinhosamente intitulava o seu ninho). Era impossível uma recuperação destas ter acontecido. Mas aconteceu.
Foi a recuperação suficiente para que tendo ele sido internado em 10 de Março de 2007, no dia 31 de Março de 2007 já estava presente de pedra e cale no baptizado da sua bisneta Madalena (aquela de quem ele nunca esqueceu o nome) pronto para a celebração com direito a jantar, vinho e cigarros. Foi um golpe de face surreal para o qual não há explicação. Vê-lo durante 3 dias num estado deambulante e depois vê-lo recuperar dia a dia a olhos vistos daquela forma. Parecia impossível. Impossível para alguém de 80 anos. Mas aconteceu.
Depois disto sucedeu-se novamente o inexplicável. Quando tudo parecia voltar à normalidade uma série de réplicas de AVCs atiram-no novamente para o hospital e daí já não voltou mais a casa passando para uma clínica de reabilitação. E assim supliquei para que não acontecesse o mesmo pela terceira vez. Mas aconteceu.
Dois anos e meio a vê-lo definhar lentamente, muito lentamente. Não sei se fazem ideia do que são dois anos e meio? Qualquer coisa como 913 dias. É difícil fazer uma habilidade destas. Imaginem que alguém queria inventar uma tortura em que calmamente fosse dizimando outro indivíduo. Mas algo tão meticuloso que não poderia tirar-lhe a vida de um momento para o outro. Tinha que ser algo em que refinadamente fosse retirando as capacidades ínfimas, uma a uma até num somatório de 913 dias fizesse então aí sim apagar a sua chama. Algo assim só me lembro na tortura do pecado da preguiça do filme “Seven” do David Fincher.
Mas porquê 913, porque não mais, porque não menos? Será que é o break-even entre a fase em que ainda dá rendimento ao hospital, clínica, farmacêuticas, manter a vida de uma pessoa e a outra fase em que o trabalho e a despesa de manutenção já não compensam o retorno do investimento. Se calhar é mesmo isso. Se calhar até foi na própria clínica que deram um ajudinha a que as coisas se proporcionassem. Claro que foi. Não como acto deliberado, mas apenas como uma subtil negligência. Mas isso é grave? Não sei…
Sei que olhando para traz sinto uma névoa que obscura a minha visão do primeiro dia em que o vi internado naquela clínica. Lembro-me de em conversa com o meu avô, ele assumir como facto consumado que apesar de detestar aquele lugar, não havia grande volta a dar e que estava consciente que precisava de uma acompanhamento de perto que em casa nunca poderia ter. Um estado de consciência que se foi esvanecendo até ao último dia em que o vi. 19 de Dezembro, esta foi a data do em que pela primeira vez ele não disse o nome da sua bisneta Madalena (o meu nome ele já não dizia à 6 meses… embora acredite que ele soubesse quem eu era… o pai da Madalena claro). 20 dias antes, no dia 30 de Novembro ao ver a Madalena o meu avô exclamou: “Não acredito que é a minha Madalena!”. Nesse dia ele estava muito mal fisicamente (deitado na cama), mas consciente.
No dia 19 de Dezembro as reacções do meu avô já eram minúsculas. Eu e o meu primo sentados lado a lado puxámos por ele de todas as formas mas pouco o conseguimos ouvir. Foi a última vez que o vimos respirar! Sinto algum encanto em pensar que os últimos momentos que estive junto do meu avô foram ao lado do meu primo, seu neto. 2 anos e meio antes também tínhamos estado lado a lado com o nosso avô no hospital. Dessa vez demos-lhe juntos o jantar. Desta vez pouco pudemos fazer.
Neste momento invadem-me muitas recordações do meu avô e todas boas. Nestes últimos 2 anos e meio sempre fomos falando do meu avô e dos seus caricatos episódios como se ele já não tivesse connosco. Era como se o avô que passou este tempo na clínica não fosse o mesmo que existia antes de ir lá parar. Na verdade sempre achei injusto que as coisas não tivessem terminado com aquele 1º AVC. Ele sempre tinha vivido como queria até àquele momento tão devastador e depois disso já nada voltaria a ser como antes. Foi como os tempos de desconto do prolongamento de um jogo de futebol que já não têm nada para dar
Mas aqui o prolongamento teve uma razão difícil de entender. Quando aconteceu o 1º AVC estávamos a 3 semanas do baptizado da Madalena e tudo fazia antever que a festa já não se iria realizar. No entanto a celebração concretizou-se e durante mais 2 anos e meio a Madalena com mais ou menos consciência (pois agora só tem 3 anos) foi acompanhando o desvanecer do meu avô. Ela sabe perfeitamente quem é (ou era) o bisavô e sei que nunca se esquecerá dele.
No dia 30 de Novembro a Madalena perguntou-me porque é que o meu avô não se levantava para nos receber. Aquilo fez-lhe bastante confusão. No dia seguinte antes de regressar a Lisboa passei pela clínica para me despedir dele, mas deixei a família no carro para que a Madalena não se impressionasse mais. O meu avô estava a dormir e dei-lhe apenas um beijo sem o acordar. A Madalena perguntou porque é que eu tinha lá ido se afinal o meu avô estava a dormir. Embora as respostas nunca sirvam à Madalena, desta vez a Mafalda deu-lhe uma explicação que a satisfez plenamente: “O pai e mãe antes de se deitarem também vão todas as noites ao quarto da Madalena e da Margarida dar um beijinho de boa noite”. Não só a satisfez como lhe deu um grande contentamento por saber que todas as noites os pais estavam ali ao seu lado.
Estes momentos completam o ciclo e explicam de certa forma porque o meu avô foi tão importante como agora são os meus filhos. E aquilo que podia ser uma relevância interrompida teve uma sobreposição de 2 anos e meio. Custa-me pensar que estes 2 anos e meio tenham sido tão doloroso para o meu avô. Custa-me acreditar que possa ser bom para alguém passar os últimos 2 anos e meio de vida internado numa clínica. Tenho imenso medo de um dia acabar assim os meus dias, porque não consigo acreditar que isso seja melhor do que ter menos tempo de vida. Na verdade só saberei a resposta quando chegar esse momento para mim. Se não tiver opção espero pelo menos ter forças para deixar escrito quais foram os meus sentimentos e se esse tempo de prolongamento valeu a pena.