Agora com 4 M’s (seria injusto que fosse: morrer na praia)

March 30, 2008

Se tivesse que descrever novamente o parto da Madalena, haveria uma explosão de ideias a debruçarem-se sobre o teclado e a conduzirem-me num rumo sem fim (http://fernandomiguelmcarvalho.spaces.live.com/blog/cns!BDFCF232DA5F8179!428.entry). Em retrospectiva do parto da Margarida nem sei por onde começar. Temas e sensações para descrever não faltam, mas escolher por qual o primeiro é um remoinho sem saída. Porquê, perguntam vocês? Mas mais uma vez nem fazem ideia.

 

A primeira causa do remoinho sem saída está em mim. A segunda é porque me sinto ingrato quando penso em escrever mais sobre “morrer na praia” (palavras da Mafalda) do que em agradecer por ter mais uma filha linda, perfeita, com saúde, com a Mafalda igualmente bem (dentro do possível, claro) e em tudo o de bom que aconteceu. Mas fazendo um esforço vou começar pelos bons momentos que se eternizam na minha memória.

 

A melhor sensação foi olhar para Margarida e ver a Madalena nos meus olhos tal e qual como no dia em que nasceu. Um absurdo. Petrifiquei com as semelhanças. Se alguma dúvida existisse era impossível ter havido troca de bebés. Ao mesmo tempo revolve-me o espírito uma enorme ânsia de lhe pegar freneticamente ao colo, envolvendo-a e sussurrando-lhe: “Olá Margarida, eu sou o teu pai.”

 

Que bom sentir novamente aquele corpo frágil, desprotegido, todo envolvido em cobertores e enroscado no meu colo, como que pedindo o meu abraço para lhe dar mais um conforto. Depois ver os olhinhos pretos levemente a entreabrirem-se, fitando-me e dizendo: “Olá papá. Que bom”. Que bom!

 

Isto foi quase o final e a compensação de 14 horas de espera. Eram 3 da manhã. Parecia pouco para quem tinha vivido tanto no nascimento da Madalena. O nascimento da Madalena tinha sido uma luta de altos e baixos, que quando nos sentíamos quase a cair no tapete lá vinha mais um fôlego que nos trazia à ribalta e nos dava forças para continuar a lutar. Agora tudo tinha parecido um daqueles pesadelos de luta em que sentimos o corpo paralisado, sem forças, com uma vontade enorme de socar mas não conseguimos movimentar nem uma mão. Fazemos um esforço gigante para mexer um braço, mas há uma âncora de toneladas agarrada que não nos deixa se quer levantar. Era assim que sentíamos cada um dos nossos esforços que tentavam trazer a Margarida cá para fora. Tudo parecia em vão.

 

Quando o esforço parecia igualar tudo aquilo que já tínhamos dado no nascimento da Madalena, pensámos: “Bem Margarida já percebemos que não queres ficar atrás da tua irmã.” E lá fomos reinventar o que fosse para juntos vermos nascer a nossa segunda filha.

 

Agora olhando para trás vejo que foi uma esperança e um esforço infortúnio. O último olhar experiente daquela médica que abanando a cabeça pensava aquilo que agora consigo ouvir alto: “Pobre coitada, vai-se esforçar tanto para nada.” A mesma médica que passado 11 horas de trabalho de parto disse: “Já chega, agora vai para cesariana e sou eu que mando.”

 

Tudo porque queríamos repetir aquela experiência fenomenal e avassaladora que tinha sido o nascimento da Madalena. Mas já alguém dizia: “Não há dois filhos iguais. Não há duas gravidezes iguais.” E não há mesmo. Só nós é que não queríamos acreditar. A nossa convicção era tal, que as médicas nem se sentiam confiantes na forma como todos os diagnósticos apontavam para a cesariana:

- A Margarida começou com taquicardia;

- A Mafalda estava infectada com uma bactéria. Logo a Margarida não devia ficar muito mais tempo na barriga com a bolsa rebentada porque podia ser contaminada;

- A Mafalda estava com febre;

- Nas últimas 6 horas a dilatação manteve-se nos 7 dedos;

- A Margarida não tinha descido o suficiente e não estava em posição para nascer.

- e mais umas quantas coisas que nem sei descrever.

 

Com tudo isto havia alguma dúvida para não levar a Mafalda para cesariana? Sim, havia mais uma. Só no fim soubemos que a Mafalda tinha que assinar um termo de responsabilidade para que fosse feita a cesariana. Esse termo continha todas as justificações do diagnóstico acima.

 

Pelo desenrolar dos episódios as médicas perceberam que só com muitos argumentos levariam a Mafalda para a cesariana. Mas no fim quando já aceitávamos a cesariana como acto consumado, duas das médicas já pareciam demovidas pela nossa vontade e questionaram-nos com o mesmo lamento que nos percorria as almas, com uma voz mais arrastada e incerta: “Acham então que deve ser cesariana?”. Parecia que estavam a pedir a minha confissão.

 

Nunca dissemos às médicas: “Cesariana não.” Durante todas aquelas horas confiámos nas médicas e enfermeiras e fomos apenas questionando tudo o que havia para questionar para sentirmo-nos conduzir o parto por onde achávamos que deveria ir. Mas houveram muitas atribulações e nuvens ofuscantes. Passos que nem percebemos que direcção levavam:

- A Mafalda levou 4 epidurais quando na Madalena levou apenas duas;

- A bactéria que se falava, nunca chegámos muito bem a aperceber donde tinha vindo aquele diagnóstico;

- Quando mediram a temperatura 36,7 à Mafalda consideraram que não era febre. Mas depois de eu chamar a atenção que na leitura anterior ela tinha 35,5 (temperatura normal na Mafalda), então já era febre.

- Mais tarde quando a Mafalda estava cheia de calor alarmaram-se dizendo que ela ARDIA em febre. Tive que pedir 3 vezes para lhe medirem a febre para tirar dúvidas e da última vez quase que gritei e exigi que lhe medissem mesmo a febre. Como eu sabia (eu conheço-a) ela tinha 36,9. Logo, não ARDIA em febre.

- Durante o trabalho de parto a Mafalda fez análises sanguíneas (devido aos sintomas de febre) cujos resultados não eram bons, mas também diziam que não eram maus;

- Por vezes diziam à Mafalda para aguentar a ver se adiava a próxima dose de epidural, outras vezes diziam para alertar assim que houvesse dores para dar logo outra dose;

- Chegaram a dizer que a Mafalda só podia levar no máximo 3 doses de epidural, mas mais tarde já contaram a história de uma outra forma completamente diferente;

- O coração do bebé ora estava em taquicardia, ora não estava.

 

Com tudo isto e no meio de um grande alarido, quando nos confrontam com a cesariana as palavras da Mafalda foram: “tenho a sensação que morri na praia.” Depois virou-se para o lado de costas para as médicas e com uma lágrima a escorrer pelo rosto soltou um último desabafo: “com cesariana ficarei muito mais tempo sem poder pegar na Madalena ao colo.” Chiça que esta até a mim me doeu: “mais tempo sem poder pegar na Madalena ao colo.” A transmissão de energia dos abraços apertados da Madalena (com palmadinha) seriam adiados à Mafalda por causa da cesariana. Brrmmmmmm. Que arrepio.

 

Não pode ser. Tenho que fazer mais qualquer coisa. “E se inclinarmos mais a cabeceira da cama? E se a pusermos de pé? E essas análises afinal o que é que dizem? Mas a taquicardia é partir de que pulsação? MAS ELA NÃO TEM FEBRE! FAZEM-ME O FAVOR DE LHE MEDIR A FEBRE PARA ME DEIXAR MAIS DESCANSADO?”

 

Mais meia dúzia de acções e as enfermeiras finalmente deixam-nos. Toca a esperar mais umas horas para ver o que dá. A Mafalda está maluca com as dores nas costas. São 21 horas não almocei, não jantei, estou farto de estar ora em pé, ora sentado numa horrível cadeira de plástico. Mas mesmo assim agora ninguém vai desistir.

 

A minha função nas 3 horas seguintes foi fazer massagens nas costas da Mafalda. Com o tubo da epidural a atravessar-lhe nas costas esta missão torna-se ainda mais complicada. Mas lá vamos girando aqui e acolá e as dores lá vão passando. Pelo menos é o que ela me diz. Pelo meio, a Mafalda também vai prevendo o fim da história: “Estou para aqui a adiar o inevitável e vou acabar com uma cesariana.” Pensa ela e penso eu o mesmo. Mas o que é que eu posso dizer? Ela não queria mesmo a cesariana. “Não vais nada Mafalda. Tu és forte. Não foste abaixo com a Madalena e agora também não vais. Tem calma. Vais conseguir.” Mas acho que já havia um desânimo na minha voz, que não convencia ninguém.

 

Pensei recorrer então à intervenção divina. Mas sou ateu. No entanto sou supersticioso. Alguma coisa que eu tinha feito estava a lixar aquilo tudo. Claro, a máquina fotográfica. Do nascimento da Madalena não há fotos de nada. Apenas o texto que registou todos os acontecimentos. Desta vez não me tinha esquecido e ia apetrechado com a máquina fotográfica.

 

Às 13:20, assim que tínhamos chegado ao Hospital da Estefânia já a Mafalda estava com 4 dedos de dilatação, e tudo fazia antever que desta vez o nascimento seria mais pacífico. E até foi bastante tranquilo até às 17:00, quando após novo toque soubemos que a dilatação pouco tinha evoluído.

 

Até ali tudo tinha sido uma alegria. A Mafalda após a 1ª epidural até dizia que estava no paraíso. Não sentia dores nenhumas. Nem nada de efeitos esquisitos como “inchar que nem um balão e ficar muito roxa” (ver nascimento Madalena). Nada. Por isso até deu para grande sessão de fotos e filmes. Foto aqui, foto acolá, foto ao CTG, foto a nós, etc e tal.

 

No meio disto diz a Mafalda: “Há momentos que eu preferia guardar para nós. Não vais fotografar pois não?” Não estava muito convicto disso, mas logo se veria. Mas não fotografei mesmo.

 

Às 22:00 quando vi que a coisa estava a ficar mesmo para o torto e não havia muito mais a fazer pensei: “que promessa faço para que isto vá para parto natural?” Já sei. Prometo que se for parto natural, esqueço a máquina fotográfica e não tiro nenhuma foto, nem faço filmes. Mas não resultou. A promessa não deu em nada. E a Mafalda à meia-noite e meia mudou de maca e foi para o bloco operatório.

 

A transição de maca já foi na base do suplício. A Mafalda estava cheia de contracções nas costas e nem se conseguia mexer. As enfermeiras já pareciam em pânico porque o coração da Margarida já começava a passar as 200 pulsações. Começava-me a sentir num dos episódios do “Emergency Room ”. Um último beijo, mais uma pequena força e fico eu só no meio daquele pandemónio para trás de tudo. Eu para trás e só. “Isto acaba assim?” Claro que não, mas para mim acabava ali.

 

Fogo. Nunca gostei de perder a oportunidade de intervir naquilo que mais quero. Mas agora já não posso fazer mais nada. Só se invadisse o bloco operatório! Mas é melhor não… Vou ficar aqui? Que treta… Daqui a uma hora vão chamar-me para ir ver a Margarida ali ao corredor e tirar-lhe umas fotografias. Fo…-se para as fotografias. Ergo a máquina no ar e decido parti-la contra ao chão. Bem, supersticioso mas não tanto.

 

Lembro-me de no nascimento da Madalena ver um pai a ir ver o filho ao corredor após a cesariana. Na Estefânia os pais esperam numa sala sem ninguém (para os pais) que os venham chamar para verem os filhos. Um cenário decadente. Estão ali feitos totós à espera que os chamem. Depois lá vem o carrinho com o bebé, como se fosse um carrinho de sobremesas de um restaurante, que se desloca com um chiar: “híííim, híííim, híííim,” e só falta dizerem: “Aqui está!”

 

Em 5 minutos tem-se a oportunidade de pegar nos filhos e tirar 50 fotos enquanto são despachados e enxotados por uma enfermeira. Que figurinha aquela pensei eu a primeira vez que vi um pai naquele papel. Isto enquanto eu saia lá de dentro de peito erguido, depois de ter acompanhado todo o parto e ter pegado na minha filha logo acabadinha de sair do forno, ainda cheia de sangue. Mas agora também estava eu ali na sala dos totós com a máquina fotográfica na mão à espera de 5 minutos de glória. Que frustração.

 

É esta a palavra que adiei escrever. É esta a palavra que não queria escrever porque afinal tive tudo o que mais queria: a Margarida e a Mafalda. Mas mesmo assim, mesmo após todo este tempo não consigo deixar de o sentir. Apesar de toda alegria avassaladora daqueles 5 minutinhos em que vejo os olhinhos a piscar da Margarida. Apesar de reconfortante reencontro com a Mafalda. Apesar de tudo.

 

Dizem uns que longe da vista longe do coração. Acho que para quem nunca acompanhou um parto de corpo e alma, também não sentirá qualquer incómodo de ter ficado na sala dos totós. Mas para quem já passou pela primeira experiência, ficar-se apenas pela sala dos totós …. carambas.

 

Todas as histórias têm uma conclusão. Na Madalena foi uma acelerada viagem de piscas a cintilar e buzina a ecoar, pelas ruas de Lisboa, comigo a navegar enfriadamente no meu smart rumo à Estefânia.

 

Agora o fim da história, foi chegar a casa com um turbilhão de ideias na cabeça e ver a Madalena de braços abertos a gritar: “PAPÁ, PAPÁ, PAPÁ, PAPÁ …” Depois um abraço caloroso, a cabeça encostada no meu ombro e um novo papá em tom baixinho de ansiedade satisfeita: “papáaaaaaaaaaaaaaaaa…..” Ali ficamos os 2 abraçados. A mãozinha dela a dar-me palmadinhas nas costas e dizendo baixinho: “meu papáaaaaaaaaaaaaaaaa…..”.

 

Tive a ideia que ela sabia o que eu estava a sentir e quis-me reconfortar. A Madalena é de feitio vincado e existem muitas vezes que mesmo após um fim-de-semana inteiro sem me ver, a primeira coisa que me diz é: “papá não.” E ri-se a fugir, claro. Mas desta vez nem houve espaço para brincadeiras. Éramos nós, a família dos M’s, como os chocolates. E ela sabia tudo o que se estava a passar porque ela é um desses M’s. E naquele abraço a Madalena dizia-me: “Hã papá, que momentos difíceis?! Eu não pude estar lá, mas senti como se tivéssemos todos juntos”. Então percebi que realmente não éramos apenas 2 M’s (Eu e a Mafalda), mas sim 3 M’s. E que desde que ela tinha nascido já tudo se transmitia por nós os 3 e não apenas entre mim e a Mafalda.

 

3 M’s que desta vez foram forçosamente separados, porque era assim mesmo que tinha que ser e muitas outras vezes assim será, porque a vida é assim. A vida de 3M’s que ficaram cada um no seu sítio, mas em espírito todos unidos. A Madalena com os avós, a Mafalda com a Margarida no bloco operatório e eu na sala dos totós. E apesar de separados estivemos em força sempre juntos. Agora com 4 M’s. 

 

 

 

P.S.1 > A designação de “sala dos totós” não tem intenção depreciativa para aqueles que não assistiram ao partos dos seus filhos. Se não, estaria eu a depreciar-me a mim também. Claro que não. Totós (agora sim em tom depreciativo), só são aqueles que tendo a possibilidade de assistir, abdicam dela e optam por não ver o parto dos filhos porque dizem que faz impressão, e não conseguem ver sangue, e desmaiam, e porque afinal são mesmo uns totós.

 

P.S.2 > Vou comer um bife ao Galeto. Passa-me a recordação pela cabeça da véspera em que a Madalena nasceu. Tínhamos estado exactamente ali às duas da manhã a comer depois de termos passado nas urgências da Estefânia.